Tragédia em dois atos
Monólogo que funciona como prólogo: início da tragédia
Não busque poesia na sua fala,
mentirosa e comum,
Cheia de pompas e erudição,
Joguetinhos sem razão, rimas pobres
terminadas em ão ou qualquer outro sufixo:
pobres porque mentiras.
Paulo Autran comove a mim,
a você, seja teatrando ou não;
isso porque, sem erudição, ele fala
simples, puro e o principal:
é de verdade.
Você não comove ninguém
seus simulacros são mentiras
os dele eram de verdade, verdades
simples, bonitas e, por isso, cruas.
Cruas e, por isso, poéticas.
Sua erudição não é poesia.
Poesia é a sensibilidade d’Ele,
O Paulo Autran comove, consegue, condiz seu olhar
com o que a boca finge pronunciar,
mas não precisa: porque a verdade já está.
O simulacro dele é poesia: não afirme que a flor do campo é poesia.
Deixe esse romantismo patético na grama bosteada do pasto: a poesia ainda não está aí.
O que é, afinal, simulacro e poesia?
A poesia são as verdades que ninguém diz.
A verdade é o simulacro que não diz: é.
E quem enxerga o óbvio?
Não, não são os poetas: é o teatro. É o profeta. O teatro é a poesia.
Mas não cantes, ó erudição, os palcos, portanto.
O teatro é mais que isso: o teatro é poesia.
Faça teatro e fará poesia: faça teatro na poesia,
Fale a verdade que só os profetas enxergam: e só eles
enxergam o óbvio, não é, Teatro Moderno?
Fale a verdade que só o ator (que é poeta por excelência e não deve fugir) é.
1º ATO
(papel e caneta, nada de penas e tinta-nanquim... Deus o livre!)
Por que cantas tua cidade, tua idade, tua infância, infanta mimada e mentirosa?
Por que cantas a Modernidade (ou para ela), a tradição,
a merda mística do período artístico?
Deixe-os em paz:
A ninguém importa tua inutilidade.
A ninguém importa o que você sabe sobre arte.
A ninguém importa o misticismo da poesia:
a todos importa ela mesma. Nua e crua!
– Sem trocadilhos pobres, por favor.
Não faças poesia sobre passado algum:
a quem importa o interior barreado cheirando a merda de cavalo?
Não busques poesia de paisagens, já inventaram a fotografia:
não simules uma fotografia: a poesia não é isso. Nem registro nem imagem assim.
É outra coisa: outra imagem menos fixa e erudita.
Esqueça, não busques, ó erudição, poesia na mulher amada.
Mal amada é que ela deve ser: é só gostosa e pronto...
Mas não é de verdade: e tem que ser de verdade. Senão
não é poesia.
– Mas veja, ai de mim, que tragédia... O que é poesia, Mitropoulos?
Não interrompas a verdade, ou interromperás
a poesia, ainda que besta... Cala-te e faz
a verdade ser ela mesma, sentindo o ar que nem te passa,
mas joga os cabelos para trás. Entendeste, ó plagio de
Jean Tardieu?
Busque o teatro no caminho, na verdade e na vida:
Encontrando-o: isto, sim, é poesia.
2º ATO
Não mescles palavras de sons semelhantes, sibilantes, errantes:
isto também não é poesia.
Se se quiser brincar com as palavras, com o dicionário imbecil
qualquer um pode fazer: e à sua maneira, não à tua. Logo,
é inútil o que procuras. Poesia ainda não é palavra: é verdade.
– Mas e a verdade?
Não interrompas o fluxo de minha fala, ainda não dei o texto todo.
Nem o decorei, e seria, de fato, inútil: a verdade também não está aí.
E poesia, então, também não: a verdade é a terra que hoje engoliu
os olhos daquele teatrator poeta: eles são a verdade.As palavras dele, nem as suas, nem as minhas a é:
a verdade a terra engoliu.
Não faças versos sobre acontecimentos: de absurda já basta tua pretensão.
Não faças versos sobre animais, flores, flora e fauna nojentas ou belas:
o grotesco ou o sublime não são isso. Nem existem sem a protagonista
que agoniza a verdade para mim, para ti. Para Ele, que levou a verdade junto...
Não procures poesia nos objetos da sua casa, no olhar amigo, no olhar excitado,
Na libido falsa de um pênis rígido: isso também não é poesia. Nem é grotesco.
É grosso e mentiroso: e a verdade é outra coisa.
Não te fixes em tragédias (irresponsáveis, que sejam) em três atos:
dois já bastam, desde que sejam a verdade.
Não faças análise literária: pelo amor de Deus!
Isso mata a poesia, o poeta, quem lê, quem finge que lê
quem ama, quem odeia, quem execra literatura,
quem exalta a mentira toda que tem nesse repertório de palavras
Mentirosas, mentirosas, cadê a verdade?
Não uses a erudição nem a segunda pessoa do singular!
Ninguém usa o tu hoje em dia: só a comédia de costumes ruinzinha,
uso agora para fazer uma sátira pobre, como tua rima terminada em ão
inho, eijo, eira, ura, ara, ará, erei, azia... etc. Etc. Etc.
Seja pobre na escolha vocabular: isso é ser simples
Seja pobre nas aulas de análise: isso é ser simples.
Seja pobre no cotidiano: isso é ser simples.
Mas não seja pobre ao olhar a verdade:
ela só se deixa surgir às vezes.
E para poucos... A mim foi há pouco e por pouco
também.
O Paulo Autran é que a detém.
Mas não sei se tem legado que se possa absorver:
minha pretensão é pouca: tenho medo da verdade,
porque podem aparecer aqueles que fingem sê-la!
E aí me confundo, porque com essa cegueira não dá.
Cantes, portanto, à verdade para que ela volte
com ele, ele que comove, consegue, condiz seu olhar
com o que a boca finge pronunciar,
mas não precisa: porque a verdade já está.
Repara: ermas de verdade, de conceito e de potência
As palavras nada traduzem, deixe-as em estado de dicionário.
Só as busques, e aí farás poesia, quando a verdade chegar,
quando a boca começar a pronunciar mas os olhos não deixarem:
Não precisa, porque aí a verdade já estará
contigo e isso é poesia.
(Blackout: foco na verdade dos olhos do ator)
FIM